Duas oncologistas veterinárias destacam os desafios da especialidade. Renata Sobral, da Capital Paulista, fala sobre como equilibrar a saúde mental do veterinário, sem deixar de oferecer 8atendimento humanizado aos tutores que, por sua vez, já estão muito fragilizados. Kátia Oliveira, de Curitiba, Paraná, fala sobre a importância da boa comunicação entre veterinários e tutores e sua visão da oncologia, que tem como objetivo entregar qualidade de vida para o paciente e família.

Por Mariana Vilela, da redação

Saúde emocional de veterinários e tutores

A oncologia é uma especialidade que pode trazer na rotina uma pesada carga emocional para os profissionais da área, tanto na medicina quanto na medicina veterinária. Além disso, os tutores que chegam com seus animais doentes, também esperam acolhimento emocional para esse momento de incertezas, angústias e de possível luto antecipatório

A médica-veterinária oncologista, doutora Renata Afonso Sobral, proprietária da Onco Cane (São Paulo/SP) destaca que atuar nesta especialidade é encarar desafios diários em virtude de muitos dos pacientes possuírem prognósticos desfavoráveis, com baixas possibilidades de cura. Isso faz com que os tutores vivenciem situações de angústia pela incerteza de como seus parceiros animais evoluirão no processo da doença, além do receio quanto ao sofrimento que o câncer (ou o tratamento) poderá impactar na qualidade de vida (e na sobrevida) de seus animais. “E essa carga emotiva acompanha todo o processo de diagnóstico e tratamento do animal. Tenho ciência de que meu foco de atuação deve ser os cuidados aos meus pacientes, mas não tenho como ser indiferente ao anseio por acolhimento de tutores que chegam às consultas fragilizados pelo adoecimento de seus animais. Particularmente acho muito difícil dissociar essas partes”.

Ela recorda que quando iniciou os atendimentos a cães e gatos com câncer, no início dos anos 2000, na Capital Paulista, época em que trabalhava sozinha, percebeu o quanto sua saúde mental estava sendo impactada. “Eu levava o paciente mentalmente para casa, tinha dificuldades em me desligar. Ficava muito frustrada quando um tratamento que eu instituía não tinha bons resultados, ou ainda quando precisava fazer a eutanásia de um paciente que havia sido tratado previamente por mim por meses ou anos, mas que infelizmente não mais respondia às abordagens terapêuticas. Eu sentia o avançar da doença como se fosse uma falha minha. Meu desejo era curar, controlar a doença e contribuir com qualidade de vida para todos eles, mas a oncologia não é uma área onde esse objetivo é alcançado com facilidade. Foi então que percebi a necessidade de procurar ajuda profissional e comecei a fazer terapia”, recorda.

Paralelamente, Renata também procurou ajuda em grupos de discussão na área de psico-oncologia, o que na medicina humana já se encontra com muita frequência. “É comum encontrarmos a presença de psicólogos em serviços oncológicos destinados a pessoas. É um tipo de atuação profissional destinado não somente ao paciente doente, mas também à família e à equipe médica que o assiste. Fiz alguns cursos de psico-oncologia e sobre Luto para adquirir e aplicar esse conhecimento em minha prática.”

Com essa experiência, Renata e alguns colegas da área criaram o grupo PSICONVET, composto por veterinários e psicólogos que atualmente reúne cerca de 15 profissionais interessados em vários temas sobre relacionamento interpessoal no contexto oncológico veterinário, sendo a saúde mental do veterinário um tema de destaque. O grupo faz parte da lista de supra especialidades da Associação Brasileira de Oncologia Veterinária (ABROVET), que tem como objetivo produzir conhecimento em áreas correlatas à oncologia.

“Nesse grupo, além de termos a liberdade de discutir as interações humanas em nossa prática, também há oportunidade e espaço para que o veterinário expresse suas frustrações e incertezas como profissional dedicado à missão de cuidar de um outro. O estresse psíquico crônico que experimentamos, seja na interação com os pacientes ou na constatação do sofrimento alheio invariavelmente impacta nossa saúde mental”, explica Renata.

Recentemente o PSICONVET esteve presente no XII ONCOVET, congresso da ABROVET que aconteceu em setembro deste ano em Natal (RN). Nessa ocasião o grupo se reuniu com outros 25 colegas de diferentes regiões do país também interessados em um espaço para abordar assuntos relacionados à saúde mental e ao bem-estar no ambiente de trabalho. Nesse encontro Renata conta que um dos temas mais comentados eram referiam-se à ansiedade e à alta expectativa que muitos tutores depositam na conduta do veterinário. “Considerando que muitos tutores entram numa desorganização psíquica por sentirem-se, ao mesmo tempo responsáveis e impotentes pelo bem-estar de seus animais, é até compreensível pensar o porquê eles acabam assumindo uma postura tão exigente a respeito do desempenho do colega veterinário. Mas como falar não, de uma forma respeitosa, mas também deixar claro sobre o limite entre o cliente e o profissional? Sabemos que alguns pacientes dependem muito de nossa ação médica, mas por vezes as exigências do tutor acabam sendo excessivas e invasivas, principalmente através de aplicativos de mensagens e redes sociais onde as informações são divulgadas de forma extremamente ágil. “Tenho a impressão que, após a pandemia, nossos clientes tornaram-se ainda mais imediatistas”, ressalta.

Um olhar psicanalítico

E por conta desse olhar curioso para a psicologia, Renata conta que se interessou a buscar conhecimento formal sobre psicologia e psicanálise. “Fiz um curso de dois anos, na PUC, sobre teoria psicanalítica freudiana; mas como era um curso exclusivamente teórico me interessei em saber como seria a prática”.

Renata então, ingressou em um curso de formação em psicanálise no Instituto Sedes Sapientiae, instituição paulista tradicional de ensino dedicada à psicanálise. Ela concluiu o curso em 2021 e foi lá que também pode atuar como psicanalista. “A instituição tem uma clínica psicológica destinada ao atendimento à comunidade. Foi nesta clínica onde pude praticar, durante três anos, atendimento a pessoas com diferentes tipos de sofrimento psíquico. Mas minha ideia sempre foi empregar o conhecimento adquirido em minha prática como veterinária; atender com um olhar e uma escuta atenta aos meus clientes”.

Não é difícil interpretar a importância de um cão ou gato como parceiros humanos; somos curiosamente atraídos pela capacidade de conexão que eles estabelecem conosco, além da inclinação em fornecer atenção e cuidado, pela ternura infantil que eles evocam. Pets são excelentes objetos de deposição narcísica pois refletem nossos desejos de amor à altura, é um tipo de apaixonamento em que não existe espaço para os sentimentos ambivalentes tão comuns nas relações humanas. “Não tenho a intenção de ser a analista dos meus clientes, mas considero o momento conflituoso que o tutor experimenta. Hoje consigo fazer isso com um conhecimento mais formal. Antigamente eu era apenas intuitiva”, conta.

Renata ainda ressalta que o conhecimento adquirido nos cursos de psicanálise ajudou a proteger a própria saúde mental e não ser “engolida” pela dor e pelo pesar do contexto. “Hoje eu entendo que eu não posso me colocar totalmente permeável a dor do outro, senão eu acabo perdendo a minha potência e posso falhar”.

Por outro lado, escutar o outro demanda tempo, atenção e paciência. “Às vezes é difícil encontrar espaço na rotina para dar adequada atenção a todos, mas é muito importante ouvir e dar importância ao que o outro sente ou precisa falar. Uma das coisas que eu costumo comunicar aos meus clientes é que eu estarei presente e participativa durante o processo de acompanhamento do paciente. Isso faz com que a pessoa não se sinta sozinha em sua dor. Acredito e espero que essa seja uma abordagem que colegas veterinários passem a aplicar, cada vez mais, em suas rotinas”.

Renata Sobral, médica-veterinária oncologista e psicanalista. Siga @clinicaoncocane

 

Se não há cura, há qualidade de vida

Os cuidados com o paciente oncológico começam na comunicação do diagnóstico ao tutor, pois dependendo de como a doença for exposta, o tutor pode se assustar e se recusar a fazer tratamentos e procedimentos que podem aumentar a sobrevida e a qualidade de vida do animal

“O câncer não é um atestado de óbito e, sim, o início de controle de dor e qualidade de vida, para que o paciente, mesmo com uma doença crônica degenerativa, como o câncer, possa ter maior sobrevida e sem sofrimento”, destaca a médica-veterinária oncologista de Curitiba (PR), Kátia Oliveira.

Há mais de 20 anos na medicina veterinária, sendo 13 deles dedicados à oncologia, Kátia fez também especializações na área de cuidados paliativos e controle da dor, para poder oferecer um atendimento mais humanizado aos seus pacientes oncológicos.

Para controle da dor, os veterinários podem consultar vários estudos e escalas para poder avaliar a intensidade da dor em pacientes como cães e gatos. Já com relação a qualidade de vida, Kátia explica que vai depender muito do indivíduo, da rotina e suas características. “Para eu conseguir identificar o que é qualidade de vida para aquele paciente eu preciso conhecer e conversar muito com o tutor. Por exemplo, se determinado paciente adorou comer a vida toda petiscos e, de repente, para de gostar de comer é diferente daquele outro paciente que nunca gostou de comer muito e continua sem gostar. Pode ser um indicativo ou não de qualidade de vida. Por isso é importante conhecer bem a rotina e as características do animal. É sutil o que pode representar falta de qualidade de vida para um e para o outro”. Kátia conta ainda que existe uma escala de qualidade de vida chamada H5M2, feita por uma médica-veterinária norte-americana, Alice Villalobos, onde ela destaca itens importantes na vida de um animal para ajudar os tutores e veterinários a identificar o que é qualidade de vida para aquele paciente.

Outro ponto importante é com relação a comunicação entre veterinário e tutor. Kátia explica que na oncologia os cuidados paliativos começam na forma que se comunica o diagnóstico do câncer ao tutor do paciente. “O que se vê muito ainda são veterinários passando o laudo de forma muito fria e sem acolhimento. É preciso entender que aquele animal pode ser considerado um filho para aquela pessoa ou um apoio emocional e, se você diz que aquele paciente tem expectativa de dois meses de vida, por exemplo, de uma forma abrupta, o tutor pode passar mal e tomar decisões equivocadas. Nós normalmente não gostamos daquele médico que faz o atendimento em cinco minutos e não nos dá atenção, por que o tutor vai gostar de um veterinário assim?”, questiona.

A comunicação do diagnóstico impacta diretamente na forma que o tutor vai entender o quadro e as opções para tratamento. “O que antes acontecia com mais frequência é o tutor receber o diagnóstico e não querer nem a consulta com um oncologista veterinário. Isso devido a maneira que o veterinário clínico geral comunicou o diagnóstico. Contudo hoje há muitos tutores com uma postura diferente e que querem saber os próximos passos, o que pode acontecer com o animal, o que é aquele câncer e o que ele pode fazer para amenizar a dor e o sofrimento. A maioria dos tutores já chega falando que não quer que o animal sinta dor ou sofra”, ressalta Kátia.

Outro ponto importante é avaliar que tipo de tratamento pode aumentar a sobrevida do paciente, sem tirar a qualidade de vida e compartilhar com o tutor todas as opções para que a decisão seja tomada de forma conjunta. “Há aquele momento também em que todos os recursos já foram usados e a doença já avançou muito e o melhor seria a eutanásia. O desafio então para os veterinários são os tutores que não querem a eutanásia mesmo quando chega em um estágio mais avançado. Nesse caso, o veterinário precisa oferecer para aquele paciente um tratamento que o deixe sem dor e mais confortável, explicar para o tutor que o animal pode vir a óbito a qualquer momento, quais os sinais, acolher esse tutor e essa família”.

Kátia conta que a forma que ela vê seu trabalho faz a diferença na sua saúde mental, mesmo com uma rotina mais pesada. “Muitos estagiários me perguntam como aguentar a rotina com tantos pacientes com doenças que muitas vezes não tem cura. É importante pensar que o meu trabalho é entregar tempo e qualidade de vida para aquele paciente, caso a cura não seja possível. É essa visão que eu procuro passar para os colegas e tutores. Além disso, tem pacientes que tocam nosso coração e por que não chorar? Só não posso deixar que aquela tristeza permaneça”, conclui.

Kátia Oliveira, médica-veterinária oncologista. Siga: @petcancercare

Edição 106 – Revista Vet&Share